Homem transgênero que alegou ter sido vítima de violência doméstica por parte de um irmão conseguiu medida protetiva baseada na lei Maria da Penha. Juiz de Direito Nilberto Cavalcanti de Souza Neto, da 2ª vara de Assu/RN, considerou que a medida é necessária para proteger a vítima – e outros homens trans vítimas de violência – do microssistema de agressão que estava inserida.
“A Lei 11.340/2006, por ser um importante mecanismo de defesa criado para a proteção do gênero feminino, não pode ser utilizada como retrocesso para a população trans.”
Entenda
Segundo a advogada do caso, em julho de 2023, dois irmãos – uma mulher cisgênero lésbica e um homem transgênero – se dirigiram à DEAM – Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Assu para prestar queixa por supostamente terem sido vítimas de violência doméstica por parte de um irmão de ambos. As vítimas requereram medidas protetivas de urgência, previstas na lei Maria da Penha.
Inicialmente, o juiz de Direito Nilberto Cavalcanti de Souza Neto, da 2ª vara de Assu, indeferiu o pedido para o homem transgênero, sob o argumento de que as medidas protetivas não previam aplicação a este gênero.
A defesa recorreu e pleiteou: (i) a alteração do prenome e gênero dele nos sistemas judiciais informatizados, com fulcro na resolução CNJ 348/20; e (ii) a reconsideração e readequação da decisão, pleiteando o direito às medidas protetivas com base no argumento de que o suposto agressor teria visualizado a vítima “como uma mulher, e não como homem transgênero”, querendo ele “atingir ‘duas mulheres’, ou seja, suas ‘duas irmãs'” – argumentos ratificados pela advogada travesti Dandara Rocha em despacho virtual com o magistrado.
Instado a se manifestar, Nilberto acolheu o pedido dos causídicos. Citando Judith Butler, dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a CF, bem como precedentes do STF e do STJ, o juiz reconheceu o “microssistema de vulnerabilidade que homens trans passam, causada pela transfobia e violência de gênero”, de forma a imperiosamente “reconsiderar a medida protetiva indeferida anteriormente”, proibindo o suposto agressor de se aproximar dos ofendidos até o limite mínimo de 100m, de ter contato com eles por qualquer meio de comunicação, bem como de frequentar a residência dos mesmos.
“Me filio ao pensamento do Juiz Frederico Maciel do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), no sentido de que um homem transgênero pode ser lido e tratado socialmente, e no âmbito familiar e doméstico, como mulher e, por isso, sofre violências baseadas em gênero feminino, mesmo que sua performance de gênero seja predominantemente masculina. A conduta do acusado (…) direcionada à (…), ao se referir a vítima como mulher ‘cachorra’, ‘safada’ e ‘sapatão’, configura-se como uma tentativa de silenciar sua identidade de gênero (homem trans).”
Por fim, destacou a obra literária “Um Apartamento em Urano – Crônicas da Travessia” de Paul B. Preciado, em que o autor escreve:
“Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês.”
Atuam na causa Dandara da Costa Rocha, Maria Thereza Bezerra dos Santos e Rui Vieira Veras Neto, membros do VDRS Advocacia. Segundo Dandara, trata-se de uma das primeiras decisões com esta pauta, e a primeira tendo como causídica uma mulher trans e travesti.
O caso tramita sob segredo de justiça.
Fonte: Migalhas