O serviço de fretamento colaborativo no transporte rodoviário de passageiros vem sendo objeto de disputas judiciais em todo o país em tempos recentes. E a startup Buser é a principal personagem dessa “guerra jurídica”, pois possui uma plataforma digital que conecta pessoas interessadas em uma mesma viagem na mesma data com empresas fretadoras de ônibus.
Existem decisões contrárias à atividade da Buser em estados como Ceará e Paraná, além do Distrito Federal. Por outro lado, a empresa concentra um volume maior de decisões favoráveis em alguns dos estados mais populosos do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Conforme passam-se os meses, as situações locais mudam. Por exemplo, a Buser e suas parceiras estavam proibidas de divulgar, comercializar e promover viagens no Espírito Santo até o último mês de julho, quando uma sentença reconheceu a legalidade das operações. A decisão mais recente é do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que na última terça-feira (6/9) confirmou a revogação de uma liminar que proibia a atuação da empresa no estado.
Apesar das vitórias mais recentes da plataforma, ainda não há um entendimento consolidado em todo o país quanto à validade do fretamento colaborativo. O fim da guerra jurídica não parece estar próximo, mas existem algumas alternativas à vista — como a revisão da regulação e um entendimento vinculante do Supremo Tribunal Federal.
Contexto
A Buser surgiu no Brasil em 2017, com a promessa de oferecer viagens de ônibus de forma mais rápida e barata ao conectar passageiros e viações. Embora também atue na modalidade de marketplace — vendendo passagens em parceria com as empresas reguladas pelas rodoviárias —, a startup é mais conhecida (e contestada) pela modalidade de fretamento colaborativo.
Nesse serviço, as viagens são feitas por empresas de fretamento e os custos são divididos entre todos os passageiros. O modelo é frequentemente comparado ao da Uber.
As empresas tradicionais e algumas agências reguladoras de transportes do país consideram que essa atividade se confunde com o serviço público de transporte rodoviário e, por isso, contestam sua licitude.
A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), responsável por muitas das ações judiciais contra a Buser, argumenta que o transporte rodoviário de passageiros é um serviço público por definição constitucional. Por isso, depende de autorização do poder público e do cumprimento da legislação e das normas das agências reguladoras. Como a Buser não segue tais regras, sua atividade representaria concorrência desleal às empresas que se submetem às normas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Já a startup considera que a regulação estatal não avança na mesma velocidade das suas inovações. Também alega que as rotas não são preestabelecidas e regulares, que a prestação dos serviços não é garantida e que não há cobrança individual — somente rateio do custo total do frete.
O conflito, em muitos casos, surge na forma de questões regulatórias específicas. A principal delas é a regra do circuito fechado. O Decreto 2.521/1998 e a Resolução 4.777/2015 da ANTT determinam que as viagens por fretamento sempre devem ocorrer com o mesmo grupo de pessoas nos trajetos de ida e volta. A Buser classifica tal norma como ultrapassada, anacrônica, protecionista e anticoncorrencial.
Como acabar com as disputas?
O advogado Pedro da Cunha Ferraz, especializado em Direito Administrativo com ênfase em Direito Regulatório e Infraestrutura, levanta três formas possíveis de colocar um fim à guerra jurídica do fretamento colaborativo.
A primeira delas seria a alteração regulatória ou da política sancionatória das agências estaduais e federal. Nessa alternativa, haveria a edição de atos normativos que, por exemplo, revogassem o circuito fechado, criassem regras específicas para a modalidade ou interrompessem autuações contra a Buser e suas parceiras.
A modificação do cenário também poderia ocorrer pela via legislativa, com a aprovação de uma lei federal e/ou leis estaduais que permitissem o fretamento colaborativo. Por fim, ainda seria viável a consolidação de decisões judiciais vinculantes, já que os entendimentos atuais são limitados à primeira e à segunda instâncias.
O caminho da regulação
A maioria dos estudiosos do assunto prefere a primeira opção. O advogado Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo, árbitro e consultor especializado em Direito Público, diz que cabe à ANTT rever e repensar sua regulação.
“Na ausência de uma regulação mais contemporânea do fretamento colaborativo, empresas como a Buser acabam indo para a Justiça”, aponta Justino. Mas, para ele, a grande solução terá de vir da regulação, e não do Judiciário.
O primeiro passo seria superar a regra do circuito fechado. Porém, a ANTT não concorda com a ideia. Atualmente, há uma tensão dentro do governo federal, já que outros órgãos estatais defendem o circuito aberto como referência.
O Ministério da Economia é o principal opositor interno à ANTT. A Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (Fiarc) da pasta, em parecer, já apontou prejuízos causados pelo circuito fechado e propôs a alteração da regulação, para prever a categoria de fretamento colaborativo. Além disso, o Ministério do Turismo também já emitiu nota técnica contra a regra do circuito fechado.
O advogado Bruno Azambuja, head em Direito Regulatório dos Transportes no escritório Fenelon Advogados, concorda que, diante da divergência e dos conflitos de interesses, “só a ANTT é capaz de trazer a harmonização jurídica”. Isso porque a agência “possui os instrumentos para promover o amplo debate com a sociedade, desenvolver robusta análise de impacto regulatório, analisar possíveis efeitos concorrenciais e propor soluções técnicas”.
Azambuja lembra que desde 2020 já consta na agenda regulatória da ANTT um projeto de revisão do marco regulatório do serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros sob o regime de fretamento. Para ele, essa é uma “ótima oportunidade para debater com a sociedade a possibilidade de revisão da regra do circuito fechado”.
Na visão da advogada Amanda Flávio de Oliveira, professora de Direito Econômico, Concorrência, Regulação e Consumidor, o Brasil vive hoje as consequências ruins de uma regulação excessiva e defasada. Um dos efeitos negativos, segundo ela, é a judicialização, que persistirá “enquanto a questão regulatória não for esclarecida”.
Amanda discorda da ideia de que novos modelos de negócios precisam de regulações prévias específicas para funcionar no país. Ela lembra do direito fundamental à livre iniciativa e ressalta que as empresas disruptivas já obedecem a “inúmeras leis e regulamentos, além da disciplina contratual e de responsabilidade civil”.
Mesmo assim, as empresas tradicionais, em uma interpretação conservadora, “invocam as leis a elas aplicáveis para alegar que os novos modelos de negócio não atendem a seus mandamentos”. Dessa forma, atualizar a regulação seria um caminho seguro, porque afastaria a discussão.
Segundo a advogada, situações semelhantes mostram que, inicialmente, “o Estado, a pretexto de manter sua autoridade, termina por manter o mercado fechado às novas tecnologias”. Entretanto, cedo ou tarde acaba reconhecendo que a regulação precisa ser alterada.
O caminho do Judiciário
Por outro lado, Ferraz destaca que uma alteração pela via regulatória teria de ocorrer por parte de todas as entidades estaduais e federal envolvidas, já que a disputa “ocorre em mais de um nível federativo”. Assim, uma eventual mudança normativa promovida somente por uma agência reguladora “teria efeito apenas sobre um dos focos do conflito”, e não no país todo.
Por exemplo, se a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) alterasse sua regulação, ainda poderiam ocorrer disputas em outros estados. E se apenas a ANTT atualizasse suas normas sobre transporte interestadual, os estados ainda poderiam contestar a atuação da Buser, pois são titulares do serviço público de transporte intermunicipal de passageiros.
Situação idêntica aconteceria no caso de uma inovação legislativa. “Mesmo que haja uma lei da União que se pretenda nacional, regulando a atividade econômica de fretamento colaborativo, os estados podem, cada qual em seu âmbito, continuar questionando a validade da atividade de fretamento colaborativo e o seu caráter de atividade econômica”, assinala Ferraz.
Esse tipo de dificuldade já veio à tona no transporte individual de passageiros por aplicativo. A Lei 13.640/2018 regulamentou a modalidade, mas, segundo o advogado, “não teve, por si, a força para colocar um fim à disputa jurídica”. Isso só ocorreu quando o Supremo decidiu que os municípios e o Distrito Federal não podem contrariar a norma.
Assim, Ferraz entende que, no caso da guerra jurídica da Buser, “o caminho mais apto para a pacificação seria o enfrentamento da questão pelo STF, que firmaria precedente vinculante a respeito da matéria” — ou seja, a mesma solução empregada com os aplicativos de transporte individual.
O sistema de fretamento colaborativo já foi questionado pela Abrati no STF em 2019. Na ocasião, a própria Buser, a Associação Brasileira de Startups (ABStartups) e até a Advocacia-Geral da União defenderam o modelo de serviço. Por questões processuais, o ministro Luiz Edson Fachin negou seguimento à ação e, desde então, a judicialização passou a ser mais regionalizada.
Segundo Ferraz, a disposição do STF quanto à abertura do setor de transporte rodoviário também poderá ser medida a partir do julgamento da ADI 5.549, que tramita há mais de seis anos. Na ação, discute-se a constitucionalidade da autorização para delegação do serviço de transporte rodoviário internacional e interestadual de passageiros.
O que pensam as partes?
Em nota enviada à revista eletrônica Consultor Jurídico, a Buser diz estar convencida de que seu modelo de negócios é “absolutamente legal”, e que isso pode ser constatado “ao se examinar as principais decisões nos últimos anos”. A startup também informa que vem buscando diálogo com o Congresso em favor da abertura do mercado.
Existem algumas propostas favoráveis à Buser em tramitação na Câmara, entre elas o Projeto de Lei 148/2020, que autoriza pessoas físicas a prestarem serviços de transporte interestadual de passageiros em regime de fretamento. Hoje em dia, tal modalidade só pode ser prestada por empresas que ofereçam linhas regulares, mediante autorização.
Já o Projeto de Decreto Legislativo 69/2022 suspende a Portaria 27/2022 da ANTT, que lista hipóteses de infrações caracterizadoras do transporte clandestino. De acordo com a Buser, a portaria contradiz a Súmula 11/2021 da agência, regulação “hierarquicamente superior” que restringe o conceito de transporte clandestino de passageiros àquele promovido sem qualquer autorização.
Por fim, o PDL 494/2020 derruba a regra do circuito fechado no transporte rodoviário interestadual de passageiros. Todas essas propostas já receberam pareceres favoráveis na Comissão de Viação e Transportes, mas não andam desde o mês de julho.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que reúne empresas prestadoras de serviços tecnológicos à mobilidade de pessoas ou bens — entre as quais Buser, Uber, 99 e iFood —, também ressalta que a plataforma é “respaldada por ampla jurisprudência favorável em diversas instâncias da Justiça brasileira”.
A Amobitec defende “a abertura do mercado de transporte rodoviário de passageiros” e alega que isso traz maior concorrência ao setor, menores preços aos consumidores e ganhos em eficiência e qualidade.
Já a Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos (Abrafrec), representante de muitas das empresas que utilizam a plataforma da Buser, segue a linha de que o fretamento colaborativo possui “amparo legal” e “ampla jurisprudência favorável”.
“As novas plataformas tecnológicas proporcionam aos passageiros mais opções na hora de escolher de que forma querem viajar e a nós, empresários do setor, mais uma opção de fretar nossos veículos. Trata-se de um modelo seguro, barato e acessível, nascido da tecnologia e da inovação”, diz a Abrafrec, em nota à ConJur.
Fonte: Conjur